O que significa realmente a expressão "não amar o mundo" na Bíblia?

    "Não ameis o mundo nem as coisas que há no mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do pai não está nele." (1 Jo 2.15). Esse texto bíblico tem servido de base para todo tipo de proibições religiosas ao ponto de anular a liberdade com que Cristo nos libertou. A ideia de que a espiritualidade está associada ao isolamento ou à privação de bens materiais não é nova. O que realmente significa não amar o mundo?

      Primeiro vamos analisar a origem do termo ou sua raiz etimológica usada na bíblia. Nós temos o termo kosmos usado em Gênesis 1 para descrever a ordem criada. "mundo" então nesse caso refere-se a natureza, os animais e o meio ambiente em geral. Em Atos 17.6 é dito que os discípulos estavam "alvoroçando o mundo". Nesta passagem é usado um termo diferente para a palavra mundo oikoumene. Significa o mundo político, nesse caso os discípulos estariam alvoroçando o Império Romano que era a potência política da época. O termo kosmos também pode se referir a raça humana, aos gentios em oposição aos judeus, a raça humana menos os crentes, o mundo em oposição a Deus etc. Qual termo é aplicado em 1 Jo 2.15?

         Precisamos analisar o contexto. Logo depois de dizer que não devemos amar o mundo João enumera o que há no mundo "a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos" e a "soberba da vida". A concupiscência da carne é o apetite por paixões carnais ou desejos legítimos, mas que podem se tornar pecaminosos como comida e sexo. A concupiscência dos olhos é o desejo superficial de ter tudo aquilo que atrai aos seus olhos. Roupas, carros, luxo em geral. A soberba da vida se manifesta quando o homem não reconhece sua dependência do criador, mas age como se fosse o deus da sua própria vida.

         O que há de comum em todas essas atitudes pecaminosas é que elas têm origem em nosso coração corrompido. Portanto, o sentindo de "mundo" que João emprega em sua carta refere-se ao sistema mundial que se opõe a Deus. São os valores e o modo de pensar dos incrédulos. O crente que não se deixa dominar por suas paixões e comportamentos fúteis ou orgulhoso reproduz o modo de pensar do mundo. Por isso o crente não pode amar o mundo. João não está proibindo o crente de ter prazer em coisas legítimas que o próprio Deus nos oferece através da criação.

        Na igreja primitiva uma doutrina herética bem comum era o Gnosticismo. O gnosticismo em uma de suas vertentes pregava o ascetismo que é a doutrina filosófica pela qual devemos nos privar dos prazeres materiais e psicológicos a fim de atingirmos o equilíbrio espiritual. O corpo seria mau portanto devemos "castigá-lo" através de automutilacão, rigorosos jejuns e isolamento. Essa ideia de que a espiritualidade está ligada à privação está presente até hoje. É lógico que atribuímos valor ao jejum e a abstenção do nosso conforto para honrar a Deus, porém a nossa espiritualidade não pode se resumir nisso.

         A essência do texto de 1 Jo 2.15 não é proibir a diversão ou rejeitar coisas que Deus deu a humanidade para dela gozá-las como a música, a literatura, as artes em geral. É claro que devido a natureza pecaminosa o homem acaba corrompendo a cultura ao seu redor. Porém, como diz o texto de Tiago "Tiago 1: 17. Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação. Satanás não é dono da música, da literatura, das artes em geral. O cristão precisa resgatar a cultura e não isolar-se dela com o argumento legalista de que são coisas do "mundo". Isso não é espiritualidade é a velha ideia de que o isolamento e a privação tem algum valor em si mesmo.

        Jesus se divertiu. Seu primeiro milagre foi em uma festa em um casamento em Caná da Galileia. Quando se fala em religiosidade e legalismo não há melhor texto que resume o que Jesus ensina sobre isso "Mateus 15: 11. Não é o que entra pela boca que contamina o homem; mas o que sai da boca, isso é o que o contamina. 18. Mas o que sai da boca procede do coração; e é isso o que contamina o homem. 19. Porque do coração procedem os maus pensamentos, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos e blasfêmias. 20. São estas as coisas que contaminam o homem; mas o comer sem lavar as mãos, isso não o contamina.